quarta-feira, 4 de abril de 2012

A Mulher de Branco na TPM


O coveiro Nelson, do Cemitério Doces Almas estava muito preocupado com a frequencia do referido recinto. Todo finalzinho de tarde, uma turma de uns dez a doze jovens, de ambos os sexos, chegavam e ia lá para o setor onde ficam as mangueiras, junto ao muro direito, no finalzinho. Ali era o lugar mais escondido, porque havia mausoléus suntuosos, daqueles que se constroem capelas e se colocam grandes esculturas de arte.

Ainda era dia, quando exalava o cheiro de erva queimada e, chegando mais perto, dava pra ver até a fumaça.   Mas com a escuridão, a coisa piorava, pois ouviam-se gritos, altas gargalhadas, gemidos. Nelson cansou de ligar pro número de emergência policial, rádio patrulha, mas nunca mandaram viatura, não sabia ele se por medo, ou por eles serem ocupados com coisas mais graves. Afinal, ali já estava todo mundo morto mesmo...

Antes do dia raiar, a trupe se evadia do local. Algumas vezes, o coveiro fechara o portão principal, mas eles davam um jeito, ora subindo nas árvores e pulando o muro, ora saindo pelo portão que dava acesso ao setor de liberação de corpos. Chegaram até a abrir um buraco no muro.

Nelson sentia um pouco de medo, de que acontecesse alguma tragédia entre eles próprios, afinal, no estado em que ficavam, sabe-se lá do que poderiam ser capazes. Temia um pouquinho por sua própria segurança também. Mas o que mais o incomodava, era a falta de respeito com os mortos, que "não tinham nem como se livrar de ficar no meio daquela fumaça e daquela baderna".

Depois de alguns dias de angústia, uma ideia luminosa. Nelson, que morava sozinho desde que a mãe passou a ser mais uma "moradora" do Doces Almas, revirou em casa um baú velho de sua saudosa genitora e encontrou alguns itens que ajudariam em sua missão secreta. Chegou mais cedo no serviço, às 17 horas, meia hora antes para poder guardar as tralhas sem ninguém perceber.

Fez o seu serviço normal, no turno da noite não havia enterros, apenas velórios, então ele deu a assistência às famílias que ali estavam, fez a vistoria corriqueira, abasteceu os banheiros, vistoriou a limpeza, jogou inseticida nos bueiros, entre outras coisas. Se ocupou bastante para o tempo passar logo. Às 23 horas, voltou para o seu posto lá próximo aos túmulos. Entrou no quartinho e procedeu a uma transformação, digna de Bela Lugosi nos filmes da década de 30. Vestido com uma túnica branca que cobria completamente bracos e pernas - até os pés -, com uma  peruca de cabelos brancos que comprou no caminho, numa das esquinas, pois estava próximo do carnaval, o rosto coberto por pasta d'água e com um véu, Nelson se transformou na mulher de branco.

Lá pela meia-noite, ele, com uma lanterna adaptada por dentro da túnica, de forma que saía uma luz em forma de aura, saiu em direção às mangueiras. Ia andando por entre os corredores, com os braços levemente abertos e um olhar sereno, perdido. Quando passou por um dos corredores transversais, saindo de um e entrando por outro, começando a chegar perto das vítimas, ouviu algo como: "'Véi', acho que exagerei hoje... 'tô' vendo coisa já..." Quando chegou de frente para eles, bem de frente mesmo de onde a maioria estava, pois outros já haviam se dispersado para lugares mais escondidos ainda, ele fixou o olhar e percebeu os semblantes atônitos, surpresos, horrorizados, mas silentes.

Afastando-se, continuando sua caminhada, ele ouviu: "Essa parada hoje tá misturada... só pode ser..." e "aí boy, tu viu aquilo?" e ainda "corre aqui, "véi", a "mulé" desmaiou". Mas como o que esperava era que todos saíssem em debandada, ficou um pouco decepcionado, achando que sua estratégia não dera certo.

Nesse dia, deixou o portão fechado e depois percebeu que até restos de roupa ficaram pelo muro escalado, demonstrando uma certa pressa em sair dali. Falou com seu colega que queria dobrar o plantão, ou seja, trabalhar novamente na noite seguinte, pois sua escala era 12 por 24 e ele queria seguir adiante com o plano. O colega, lógico, topou.

Na noite seguinte, mesmo ritual. Ele percebeu que tinha mais gente e alguns, sóbrios. Estes, correram, mas em silêncio e subiram naquelas mangueiras, Deus sabe como. Os que estavam sob o efeito do que se cheirava e se bebia, tiveram reação semelhante à do dia anterior e mesmo os que quiseram correr, estavam tão chapados que não conseguiam.

Outra dobra de plantão, tudo de novo e mais gente ainda. A plateia aumentava e Nelson desanimava. Depois de 5 dias sem dormir, extremamente cansado e estressado, Nelson sentia uma irritação estranha e sem controle, uma impaciência, uma repulsa a qualquer pessoa e em alguns momentos, desânimo e vontade de chorar, assim, do nada. Qualquer pergunta que fizessem era respondida com rispidez e secura, totalmente o oposto da sua forma costumeira de agir com as pessoas.

Nessa "TPM" e travestido da mulher de branco, já não andava com a mesma delicadeza e fluidez dos outros dias, mas sim com passos lagos e firmes, rápidos, querendo acabar logo com aquilo, ou querendo entrar em um daqueles túmulos, ou querendo matar um... nem mesmo ele sabia o que queria... e quando foi se aproximando da plateia e começou a ouvir os susurros de sempre, aí o pavio terminou de queimar e a bomba explodiu... e Nelson juntou toda essa raiva para tomar fôlego e, olhando fixamente nos rapazes e moças amontoados, soltou o urro mais horrível que já se ouviu dentro daquele recinto, que até os mortos escutaram.

Os visitantes diários saíram num desespero de quem está vendo Freddy Crooger e Jason juntos. Escalaram muros, pularam das árvores, escalaram o imenso portão, arrombaram a porta de acesso ao IML, não restando viva alma, nem as cheiradas.

E nunca mais se viu aquele tipo de frequentador por ali. Depois da meia-noite, só mesmo a mulher de branco, dia sim, dia não. Sem TPM.

Não sei ao certo se isso aconteceu. Só sei que foi assim que me contaram.